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Nada concentra mais a mente do que a
certeza de que se vai ser executado na manhã seguinte.
Talvez não seja coisa de genoma, mas
podemos garantir que contar e ouvir histórias são coisas que fazem parte da
natureza humana. Histórias, em primeiro lugar, representam um antídoto contra a
ansiedade em nós despertada pelas interrogações que todas as culturas se fazem
sobre o universo e sobre a existência. Para os povos ditos primitivos,
fenômenos naturais como a aurora, o crepúsculo, as chuvas (sem falar em
catástrofes) envolvem um elemento de mistério para o qual o mito é a resposta.
Mito: na linguagem comum, o termo tem uma conotação que às vezes envolve fama e
mistério (o mito Greta Garbo é um exemplo ilustrativo), mas, mais
freqüentemente, significa mentira, lorota; aliás, mitômano é um mentiroso
contumaz. Já os estudiosos do mito, que incluem nomes como os de Ernest
Cassirer, Frazer, Durkheim, Lévi-Strauss, vêem-no de forma diferente e muito
mais significativa. O mito é uma narrativa ficcional, sim, freqüentemente
envolvendo personagens sobrenaturais, mas que, sendo estória, é vista como
História, como algo que realmente aconteceu num passado distante (in illo
tempore) e que proporciona uma explicação para os fenômenos do universo em que
vivemos: o mito, disse Malinovski, é um equivalente da ciência. Já Freud chamou
a atenção para a semelhança entre mito e sonho, e Jung postulou que os mitos
ficam embutidos no inconsciente coletivo: passam assim de geração em geração,
muitas vezes associados a rituais de caráter religioso, sagrado. Nesse sentido,
o mito é diferente da história folclórica, da qual a fábula é um exemplo. Mito
também não é lenda, que tende a preservar uma figura do passado (um santo, um
herói, um rei), um lugar, um acontecimento. Mas mitos, histórias folclóricas,
lendas – a ficção em geral – dão testemunho dessa paixão humana pela
narrativa.
Falamos antes na ansiedade em relação ao
universo, mas essa é apenas uma das formas de nossa ansiedade. Existem outras,
como a ansiedade da separação, que tem seu início por volta dos seis meses e
que se manifesta por uma reação de angústia quando a criança tem de se separar
dos pais, sobretudo da mãe. Essas crianças não conseguem permanecer em um
quarto sozinhas e seguem os pais por toda parte. O quadro desaparece em torno
dos três anos, mas pode retornar à época de entrar na escola e acompanhar o
adulto pela vida toda.
A ansiedade de separação manifesta-se
sob forma de uma cena típica. É de noite; a família já jantou, já viu um pouco
de tevê. É então que o pai ou a mãe volta-se para a criança com o anúncio
fatídico: está na hora de ir para cama. No passado, a própria tevê
encarregava-se disso por meio de um anúncio dos cobertores (claro) Parahyba.
Aparecia uma criança de camisola, segurando uma vela acesa, enquanto se ouvia
uma música de fundo: “Tá na hora de dormir/ não espere papai, mamãe mandar./ Um
bom sono pra você/ e um alegre despertar.”.
Com ou sem anúncio, com ou sem
pedagogia, está para nascer a criança que receba com alegria essa notícia, que diga
algo como: “Oba, finalmente chegou a hora de dormir.”. E isso pela simples
razão de que a criança será afastada dos pais e dos irmãos, terá de ir para o
seu quarto e deitar na cama; a luz se apagará e ali estará o menino ou a
menina, no escuro, tendo de atravessar o limiar que separa o conhecido e
gratificante mundo da vigília do mundo dos sonhos, que pode ser também, e
freqüentemente o é, o mundo dos pesadelos – sem falar no terror noturno, penosa
situação em que a criança acorda gritando e num estado de extrema agitação
motora.
Mas todo pai e toda mãe sabem que existe
um antídoto para a recusa da criança: “Se você for deitar agora, eu lhe conto
uma história.”. É uma proposta irrecusável. Detalhe: se em vez de contar a
história a mãe ou o pai ler a história, podemos ter certeza de que naquele
momento estará nascendo um futuro leitor ou leitora.
Há duas razões para que a criança se
sinta confortada nessa situação. A primeira é a presença “reasseguradora”, e a
voz, do pai ou da mãe. A segunda é a própria história. Histórias nos dão, senão
a certeza, pelo menos a sensação de que as coisas no mundo fazem sentido, que
elas têm um começo, um meio e um final – geralmente um final feliz. Aliás, para
a criança, é mais importante o começo da narrativa, o clássico e excitante “era
uma vez” do que o “e aí viveram felizes para sempre”. O final tradicional é
mais ou menos previsível – e isso explica por que, no cinema, muitas pessoas
levantam antes de o filme acabar. Pela mesma razão a criança não raro adormece
antes do final da narrativa.
E isso tudo nos leva às Mil e uma
noites, essa coletânea maravilhosa que, originária de narrativas do Irã,
Afeganistão, Usbequistão (denominações modernas para regiões antes distantes e
misteriosas), atravessou os séculos e chegou até nós por meio de numerosas
traduções para línguas européias, a primeira das quais feita no século 18 por
um abade francês. A mais citada, porém, é a gigantesca (16 volumes) versão de
Sir Richard Burton, do século 19.
O início, e o elo condutor da obra, são
bem conhecidos. Enfurecido pela infidelidade de sua esposa, o rei Shahriyar (ou
Schriyar) manda matá-la e, convencido de que todas as mulheres são pérfidas,
ordena a seu vizir que lhe traga uma esposa nova a cada noite. Casamentos
relâmpagos, porque as coitadas são executadas ao amanhecer. Entra em cena a
própria filha do vizir, a astuta Shahrazad ou Scheherazade, que se voluntariza
para o matrimônio. É que ela tem um plano: mantém o soberano em suspense com
suas histórias, com o que vai adiando sua execução. No final, e depois de dar à
luz a três filhos, o rei fica convencido de sua inocência.
O tema das histórias varia amplamente,
incluindo narrativas históricas (o califa Harun al-Rashid é um personagem
freqüente), burlescas ou religiosas. Algumas, como as de Ali Babá, Aladim e
Sindbad, adquiriram existência própria. Não raro um personagem conta uma
história, que pode ter outra dentro dela, como aquelas bonecas russas, o que
torna o conjunto ainda mais complexo e fascinante.
As histórias das Mil e uma noites
começaram a ser coletadas por volta do ano 1000. O que explica seu sucesso
ainda hoje, um milênio depois?
Em primeiro lugar, as próprias
histórias, sempre interessantes. Mas há um elemento adicional e muito
importante: Scheherazade é a precursora de algo que, sob várias formas,
representaria um sucesso crescente: a narrativa seriada.
O primeiro impulso para isso foi a
invenção da imprensa, que permitiu a existência do livro, do jornal, da revista
– do periódico, enfim. E o periódico, por sua vez, permitiu a serialização da
ficção, que chegou a seu auge no século 19, durante o qual muitos escritores
populares ganhavam a vida, e às vezes faziam fortuna, escrevendo para jornais,
revistas ou fascículos. Muitas das novelas de Charles Dickens foram publicadas
dessa maneira. Os fascículos, impressos em Londres, eram enviados através do
oceano para os Estados Unidos. Quando chegava o navio trazendo tais fascículos,
multidões acorriam ao porto: gente ansiosa por saber o que tinha acontecido com
a Pequena Nell. Do mesmo modo as histórias de Sherlock Holmes foram
originalmente criadas por Arthur Conan Doyle para serem publicadas em série na
revista The Strand. Na França, Eugène Sue era muito popular, e seu trabalho foi
analisado por ninguém menos do que Karl Marx. No Brasil, o gênero recebeu a
denominação de folhetim e atraiu escritores do porte de um José de Alencar. O
Guarani estreou assim, coisa que é fácil de perceber na leitura do livro: os
capítulos são relativamente curtos, têm aproximadamente a mesma extensão e
sempre terminam com um suspense cujo evidente objetivo era fazer o leitor
correr à banca no dia seguinte para acompanhar as aventuras de Peri.
O cinema aproveitou a mesma fórmula nos
chamados “seriados”, filmes de aventuras, em geral de reduzido orçamento e que
contavam sempre com três personagens: o mocinho, a mocinha e o bandido. O
malvado bandido estava colocando o mocinho ou a mocinha ou ambos em situações
de perigo – a mais clássica sendo aquela que mostra a heroína amarrada aos
trilhos da ferrovia e retorcendo-se desesperada enquanto o trem se aproxima a
toda a velocidade (no derradeiro segundo, o mocinho a salva). O seriado em
geral tinha quinze capítulos; cada capítulo era exibido na matinê de domingo,
junto com os dois filmes principais e desenhos. Exemplos famosos são Os perigos
de Nyoka e As aventuras de Flash Gordon. Heróis das revistas em quadrinhos,
como Super-Homem, Batman e Capitão América, também chegaram às telas em
seriados. A propósito, programas radiofônicos com esses e outros heróis (no
Brasil, o Sombra e o Vingador eram muito populares) tinham grande audiência.
Mas foi com a tevê que a serialização
chegou a seu auge. E a forma mais popular são as novelas, conhecidas nos
Estados Unidos como soap operas, porque várias eram patrocinadas por empresas
produtoras de sabonete, caso da Colgate-Palmolive e da Procter &
Gamble. Essa forma televisiva atingiu o auge em 1978, quando a CBS levou ao ar
Dallas, que projetou Larry Hagman e que adicionou à trama o elemento de
mistério: quem matou J.R.?, era a pergunta que todos os americanos se faziam.
Seguiu-se uma contrapartida brasileira: a morte de Odete Roitman era o grande
mistério da novela Vale Tudo, de Gilberto Braga, exibida entre 1988 e 1989, com
enorme sucesso: na noite de 6 de janeiro de 1989, em que o segredo foi
finalmente desfeito, o Ibope registrou que 86% dos televisores ligados no país
estavam sintonizados na Globo. Mas o gênero não era novo no Brasil. Uma das
primeiras novelas a fazer sucesso era ambientada, como as Mil e uma noites, no
misterioso Oriente: era O Sheik de Agadir (1966), de Gloria Magadan. De
início, predominava nas novelas um clima romântico, fantasioso e ingênuo, mas
aos poucos as produções, cada vez mais cuidadas, começaram a refletir as
inquietações da classe média brasileira, que forma o grande público das
novelas. Paralelamente a estas, e dirigidas a uma audiência mais restrita,
surgiam as séries televisivas, várias delas inspiradas em clássicos da
literatura, como Os Maias, de Eça de Queirós.
Conclusão: as Mil e uma noites fizeram
escola. Tivesse nascido no Brasil de agora, Scheherazade arranjaria fácil um
emprego como escritora de novelas, ganhando um bom salário. Dúvida: poderia ela
prescindir da ameaça do ciumento sultão? Talvez sim, mas nesse caso a pergunta
se impõe: de onde tiraria inspiração para suas histórias? Disse Samuel Johnson,
intelectual inglês do século 18, que nada concentra mais a mente do que a
certeza de que se vai ser executado na manhã seguinte. A bela Scheherazade é
uma prova disso.
Autor: Moacyr Scliar - escritor, autor de mais
de 30 obras nos mais diferentes gêneros. Dentre seus trabalhos, estão A mulher
que escreveu a Bíblia e Saturno nos trópicos (ed. Companhia das Letras).
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