O artigo discute o processo de aprendizagem e a subjetividade
na perspectiva epistemológica qualitativa. Tem-se como objetivo mostrar o papel
do brincar no processo de aprendizagem concebida na interação com o professor.
Participaram da experiência, "Oficina do Brincar", cinco professoras
e 28 alunos do primeiro ano do ensino fundamental em Sobradinho II ,
Distrito Federal, com população de baixa renda. Os alunos foram indicados por
terem dificuldade de aprendizado. Durante cinco meses, uma metodologia qualitativa
com ênfase na observação participativa foi utilizada. No artigo é exposta uma
fundamentação teórica sobre o brincar, seguida de relatos de observações, dos
quais aspectos particulares foram discutidos a partir de uma perspectiva do
brincar como possibilidade de uma produção positiva de subjetividade e não
apenas como procedimento didático. Conclui-se que o brincar, como espaço de
lazer, deve ser visto como constituinte do sujeito e do desenvolvimento de sua
subjetividade.
O objetivo deste artigo é discutir o processo de aprendizagem
e a subjetividade. Em nossa concepção, a subjetividade é um processo do
indivíduo como sujeito psicológico concreto (GONZALEZ REY, 1999). Concebemos a
aprendizagem na interação com o professor, o qual é responsável pela
organização dessa relação para desenvolver, simultaneamente com o intelectual,
aptidões sociais. O aluno é um ser ativo, capaz de assimilar a realidade
externa de acordo com suas estruturas mentais. Assimilar o mundo é
transformá-lo, representando-o de forma subjetiva. A aprendizagem deve
despertar o interesse, estimulando a curiosidade e a criatividade. Logo, o
interesse relacionado à atividade lúdica na escola tem-se mostrado cada vez
maior por parte de pesquisadores e, principalmente, de professores que buscam
alternativas para o processo ensino-aprendizagem.
Através da brincadeira, a criança tem a possibilidade de
experimentar novas formas de ação, exercitá-las, ser criativa, imaginar
situações e reproduzir momentos e interações importantes de sua vida,
resignificando-os. Os jogos e as brincadeiras são uma forma de lazer no qual
estão presentes as vivências de prazer e desprazer. Representam uma fonte de
conhecimento sobre o mundo e sobre si mesmo, contribuindo para o
desenvolvimento de recursos cognitivos e afetivos que favorecem o raciocínio,
tomada de decisões, solução de problemas e o desenvolvimento do potencial
criativo. A brincadeira assume um papel essencial porque se constitui como
produto e produtora de sentidos e significados na formação da subjetividade da
criança. Essa atividade proporciona um momento de descontração e de
informalidade que a escola pode utilizar mesmo que isso possa parecer um
paradoxo já que o seu papel, por excelência, é o de oferecer o ensino formal,
mas tendo também de exercer um papel fundamental na formação do sujeito e da
sua personalidade. Portanto, passa a ser sua função inclusive a de oferecer
atividades como a brincadeira. Porém, a introdução de um espaço de brincadeira
constitui uma atividade que não é fácil de se propor, uma vez que requer o
desenvolvimento da habilidade de brincar do professor. Nesse sentido, a criação
desse espaço da brincadeira, no qual a relação professor aluno se diferencia
daquela da sala de aula, necessita de um aprendizado de ambas as partes.
O trabalho aqui apresentado resulta de uma experiência
realizada em uma escola de ensino fundamental, em uma cidade Satélite do
Distrito Federal, em Brasília, formada basicamente por uma população de baixa
renda.
A experiência objetivava a criação de um espaço com
atividades lúdicas no qual professoras e alunos pudessem se relacionar de
maneira diferente da de sala de aula. Um espaço que possibilitasse o exercício
da autonomia dos alunos através de experiências novas nas quais fosse permitido
escolher o que fazer, a partir da apresentação de jogos, papel e lápis para
desenho e livros de leitura. Nesse sentido, pretendíamos utilizar o lúdico não
apenas como um instrumento didático que auxiliasse na aprendizagem dos
conteúdos curriculares. Mas, principalmente, buscávamos ampliar a percepção da
professora em relação à brincadeira mostrando a importância desta nos processos
de desenvolvimento e aprendizagem, podendo ser utilizada como fonte de diálogo,
possibilitando um maior conhecimento sobre seus alunos. Esse espaço também
traria a oportunidade de mudança de postura das professoras em relação aos
alunos, fazendo com que elas acreditassem na capacidade deles de aprender.
O BRINCAR EM DIFERENTES ABORDAGENS
Entendemos que o termo "lúdico" envolve os termos
"jogo" e "brincar". Encontramos na literatura diferentes
concepções sobre esses termos. No entanto, podemos dizer que há uma
concordância presente em diferentes autores de diversas áreas do conhecimento,
em relação ao jogo como sendo um fenômeno cultural, muito antigo, que ocorre
tanto na criança como no adulto, de formas diferentes e com funções
diferenciadas. O jogo pode ser visto como uma forma básica da comunicação
infantil a partir da qual as crianças inventam o mundo e elaboram os impactos
exercidos pelos outros.
Huizinga (1934/1971), no seu livro, que se tornou um clássico
sobre o jogo, Homo ludens, descreve esse fenômeno como sendo de natureza
cultural e não biológico. O jogo tem uma função significante que encerra um
determinado sentido. Todo jogo significa alguma coisa que transcende as
necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todavia mesmo
reconhecendo o jogo como de natureza e significado cultural, o autor admite que
deve haver alguma espécie de finalidade biológica nessa atividade. Para
Huizinga, o puro e simples jogo constitui uma das principais bases da
civilização, é uma função de vida. No jogo, a criança representa e sua
representação, mais do que uma realidade falsa é a realização de uma aparência.
Ela joga e brinca dentro da mais perfeita seriedade sabendo perfeitamente que o
que está fazendo é um jogo.
O autor não diferencia: o termo cultura do termo civilização.
Para ele, a cultura é um jogo no sentido de que surge no jogo. Por fim, o jogo
nos é apresentado como estando presente em todas as civilizações e em todas as
manifestações culturais como a poesia, o direito, a guerra, o conhecimento e as
diferentes formas artísticas. O fator lúdico também faz parte do núcleo central
de todo ritual e de toda religião. Só a partir do século XIX é que o jogo
parece perder um pouco de espaço nas expressões culturais por causa da
revolução industrial que traz o trabalho e a produção como ideais da época. O
profissional que surge nessa época não tem mais o espírito lúdico, perdido na
falta de espontaneidade. Essa maneira de o autor apresentar o jogo como
indiferenciado da civilização, como se tudo fosse jogo, não traz as
especificações do jogo como fenômeno.
Para Walter Benjamin (1984), o jogo também é visto como uma
atividade muito antiga. O brincar significa sempre libertação. Ao brincar as
crianças criam para si o pequeno mundo próprio. Frente a uma realidade
ameaçadora, sem perspectivas de solução, liberta-se dos horrores do mundo
através do jogo. O jogo, a brincadeira, por mais bem elaborados que possam ser
não trazem por si só o lúdico, mas são as próprias crianças, durante a
brincadeira, que transformam o momento em um momento lúdico, de fantasia e
realidades criadas por elas. Acredita-se erroneamente que o conteúdo imaginário
do brinquedo determina a brincadeira da criança, quando, na verdade, acontece o
contrário.
Freud (1920/1981) e autores psicanalíticos como Winnicott
(1975) e Dolto (1999) contribuem para o entendimento da importância da
brincadeira no desenvolvimento da criança. Winnicott, a partir dos seus estudos
na clínica infantil, defende a tese de que é necessário se estudar o brincar
como um fenômeno que ocorre tanto com a criança como com o adulto nas suas
formas diferenciadas. A brincadeira é universal e é própria da saúde, facilita
o crescimento, desenvolve o potencial criativo e conduz aos relacionamentos
grupais. Nesse sentido, o autor entende o brincar como algo que, por si só, é
uma terapia com possibilidade autocurativa. Quando as crianças sentem que os
outros estão livres e também podem brincar, elas se sentem confiantes para
fazê-lo. Quando a criança não é capaz de brincar, há algo errado, fazendo-se
necessário trazê-la para o seu estado natural em que ela possa brincar.
Dolto (1999) também admite o jogo como uma atividade comum a
todos os animais e que todos os filhotes dos mamíferos parecem brincar assim
como a criança humana, mas ressalta a diferença em relação à criatividade e à
variedade do jogo. As atividades dos outros animais são estereotipadas, provocadas
por uma necessidade de motricidade da espécie. Ela descreve as diferentes
etapas de desenvolvimento da criança em relação aos tipos de jogos de cada uma
delas. Para essa autora, o bebê apresenta um dos primeiros jogos de prazer
junto ao adulto na brincadeira de esconder o rosto e mostrá-lo de novo. Ela faz
referência ao jogo descrito por Freud do Fort. Da! (Sumiu. Achou!), a partir do
qual a criança se afirma a si mesma como sujeito da continuidade de seu ser no
mundo. Depois aparecem os jogos do perceber e do explorar. Em seguida, vem o
jogo que envolve o ter e o guardar no qual a criança enche cestos e malas e
leva consigo a passear. Posteriormente aparecem os jogos de construção. Para
Dolto, todo jogo é mediador de desejo, traz consigo uma satisfação e permite
expressar seu desejo aos outros em jogos compartilhados. O jogo sempre tem
regras e quando as crianças brincam entre si, as regras que estabelecem, às
vezes, são mais atraentes do que a atividade do jogo mental ou físico em questão. Ocasionalmente ,
em seus jogos solitários, a criança se impõe regras como forma prazerosa de
brincar de contorná-las, chegando mesmo ao prazer de trapacear.
Dolto (1999) ainda acrescenta os momentos aparentemente
passivos da criança, vistos pelos adultos, na maioria das vezes, como sendo
momentos de perda de tempo que a criança não estaria fazendo nada. Ela alerta
para a importância desses momentos mostrando a capacidade inteligente das
crianças em contemplar o mundo a sua volta, observando-o, meditando prazerosamente.
Se um objeto, ou atividade, interessa à criança, é porque ela encontra um
sentido fascinante e lúdico na contemplação e na manipulação do mesmo, e nos
pensamentos que ele lhe sugere.
Também através da sua experiência na clínica infantil, Roza
(1999) mostrou como o brincar, na perspectiva da psicanálise se torna muitas
vezes o único veículo possível de expressão para as crianças. Como meio
privilegiado de expressão e de apreensão da realidade, o brincar permite o
acesso ao simbólico e aos processos de complexificação da vida. Em seu
trabalho, a autora busca um resgate da utilização do método lúdico na
psicanálise de crianças, e, para isso, lança mão de outros discursos, como o da
filosofia, o da lingüística e o da semiótica defendendo o brincar como um conceito
através do qual se processa a organização do sujeito, que desenvolve a
linguagem e no qual se dá o aprendizado e o conhecimento do mundo. Roza discute
o jogo como sendo em si mesmo linguagem, uma protolinguagem não-verbal, que já
é estruturalmente linguagem. Não é evidente que o brincar seja um sistema de
comunicação que transmita uma mensagem, mas é uma atividade que pode ou não
adquirir essa função.
De acordo com Vygotsky (1984), o brincar não pode ser
definido como atividade que dá prazer à criança porque outras atividades dão
experiências de prazer mais intensas e outras não são agradáveis e só dão
prazer de acordo com o resultado. No entanto, é necessário compreender a
brincadeira como atividade que preenche necessidades da criança. Para entendermos
o desenvolvimento da criança é preciso conhecermos suas necessidades e
interesses para que os incentivos sejam eficazes a fim de promover o avanço de
um estágio do desenvolvimento para outro. O brinquedo possibilita a criação de
um mundo onde os desejos possam ser realizados através da imaginação. No
entanto, a imaginação é uma atividade psicológica específica da consciência
humana, presente apenas na criança mais velha. Sendo assim, Vygotsky conclui
que no brinquedo a criança cria uma situação imaginária. Na evolução do
brinquedo temos a mudança da predominância de situações imaginárias para a
predominância de regras. Não existe brinquedo sem regras, mesmo que não sejam
regras formais estabelecidas a priori. Nesse sentido, da mesma forma que o
brinquedo deve conter regras de comportamento, todo jogo com regras contém uma
situação imaginária. O maior autocontrole da criança ocorre na situação de
brinquedo e a subordinação a uma regra passa a ser uma fonte de prazer.
Segundo Vygotsky (1984), o brinquedo não é simbolização, mas
sim atividade da criança. Isso porque o símbolo é um signo e no brinquedo a
criança opera com significados desligados dos objetos aos quais estão
habitualmente ligados. Mesmo sem considerar o brinquedo como um aspecto
predominante da infância, Vygotsky ressalta a importância dessa atividade para
o desenvolvimento mostrando que ela cria uma zona de desenvolvimento proximal,
pois, ao brincar, a criança está acima das possibilidades da própria idade,
imitando os mais velhos nos seus comportamentos.
Para Wallon (1941/1968), o jogo é uma atividade
característica da criança e acompanha o seu desenvolvimento sendo transformado
ao longo do tempo. Pode-se destacar fases do jogo a partir das características
que possuem e que expressam. Em um primeiro momento são de tipo puramente
funcionais, são os movimentos mais simples à procura de efeitos como tocar
objetos, produzir sons e ruídos, seguidos dos de ficção, os jogos de boneca, ou
similares, que requerem uma atividade de interpretação mais complexa. Os jogos
de aquisição que aparecem posteriormente são caracterizados pela percepção e
compreensão das coisas, seres, imagens, enfim, do ambiente em volta da criança.
Por fim, os jogos de fabricação nos quais a criança transforma objetos,
combina-os, cria novos, estando a aquisição e a ficção presentes. O jogo pode
parecer uma atividade que contraria o princípio do trabalho sério
característico da fase adulta, isso porque implica lazer. A criança desconhece
a forma da atividade produtiva do adulto e o jogo assume o lugar primordial nas
ações que realiza. No entanto, o jogo pode mobilizar uma grande quantidade de
energia comparável a uma atividade obrigatória e muitas vezes apresenta
dificuldades na sua execução e compreensão.
Quando uma atividade se torna útil e produtiva, significando
um meio para se chegar a um fim, se descaracteriza essencialmente enquanto um
jogo. Para Wallon (1941/1968), o jogo envolve "uma finalidade sem
fim", ou seja, encontra em si mesmo o próprio motivo e finalidade para a
ação de jogar.
Wallon (1941/1968) entende que nas etapas do desenvolvimento
da criança pode-se evidenciar atividades explorativas das quais a criança busca
tirar proveito de todos os efeitos possíveis. Progressivamente, os jogos
atestam o aparecimento das mais variadas funções e experiências, como as
sensoriais, as de socialização, de memorização, de articulação e de enumeração.
Em relação ao adulto, o autor considera que o jogo faz um
movimento quase inverso, isto é, o adulto ao longo do tempo tende a um estado
de desligamento das ações lúdicas, buscando suprir as necessidades produtivas
de existência. O trabalho aparece como oposição ao lúdico. Talvez, por essa
razão, o adulto experimente momentos repousantes ao lado da criança quando é
possível e permitido realizar atividades descompromissadas com o trabalho
sério. Por isso, o jogo em sua essência representa uma infração às tarefas
práticas da existência, por outro lado, a criança não as ignora nem nega, mas
as inclui como necessidades na ação lúdica.
Wallon (1941/1968) analisando a teoria de Freud valoriza-a
por reconhecer o caráter da ficção no jogo. As atividades lúdicas teriam antes
de tudo um papel catártico, possibilitando momentos de manifestações e
expressões da libido reprimida. Dessa forma, há um processo de transferência da
realidade à sua imagem através de figurações. Do ponto de vista intelectual, a
transposição favorecida pelo jogo desempenha uma função primordial, uma vez que
ações simuladas para experiência (simulacros) fazem a passagem entre a
circunstância factual e o símbolo, elemento essencial das funções mentais.
O jogo emerge como uma contradição no desenvolvimento da
criança: por um lado favorece a libertação das ações habituais do sujeito, mas
necessita para sua própria manutenção da imposição de regras fixas. Assim, as
dificuldades que as regras do jogo envolvem são uma função em si mesma, não
circunstanciais, são elaboradas e direcionadas especificamente para manter o
caráter do jogo e o interesse de quem os executa. No jogo, a criança pode
reproduzir algumas experiências que acaba de ter, imita e repete impressões,
percepções e emoções. Wallon (1941/1968) acredita que as crianças alternam a
ficção com a observação e assim são capazes de transformarem-se nos personagens
que criam e imitam.
O BRINCAR NA CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE
De acordo com as linhas gerais sobre a conceituação da
atividade lúdica apresentada por esses autores, podemos concluir que a
brincadeira exerce um papel fundamental na constituição do sujeito ao possibilitar
à criança a criação da sua personalidade seja pela busca de satisfazer seus
desejos, por exercitar sua capacidade imaginativa, comunicativa, criativa ou
emocional.
Nessa perspectiva, o trabalho realizado nas oficinas tinha o
entendimento de que a atividade lúdica consistiria de um momento que envolveria
tanto o brincar concebido como atividade espontânea prazerosa, como o jogo,
enquanto atividade recreativa que envolve regras preestabelecidas. Entretanto,
mais do que o brincar e o jogar, também eram previstos momentos que fossem
apenas de descontração que possibilitassem um vínculo mais próximo entre os
alunos e os adultos, facilitando um diálogo diferenciado do da sala de aula, e
que implicaria no desenvolvimento do sujeito a partir de novos conhecimentos,
envolvendo sua constituição subjetiva. Esses momentos, por sua vez, deveriam
também ser prazerosos para os adultos. Ao possibilitar o acesso à cultura, o
brincar permite ao sujeito uma apropriação dos instrumentos culturais, o que
proporciona seu desenvolvimento.
Partindo da definição de subjetividade proposta por Gonzalez
Rey (1999), esse espaço lúdico poderia se constituir como mais um dentro dos
diferentes sistemas de relações do sujeito, que está em constante
reconfiguração da sua subjetividade. O sujeito é visto, nessa perspectiva, como
sendo o indivíduo concreto, portador de personalidade, ativo, interativo,
consciente, intencional e emocional que produz emoções nas atividades que se
implica e antecipa com suas emoções sua implicação nelas. A personalidade é
vista como um sistema em desenvolvimento constituinte do sujeito e atua como
elemento constituinte do seu próprio desenvolvimento da personalidade. A
aprendizagem, nessa perspectiva, deixa de ser concebida como um processo
isolado acontecendo apenas no aluno, em sala de aula, e passa a ser vista nas
diferentes relações e contextos vivenciados pelo sujeito.
Acreditando que o brincar possibilita o desenvolvimento do
aluno integralmente na sua subjetividade e que, portanto, não é apenas um instrumento
didático facilitador para o aprendizado de conteúdos curriculares, passaremos a
analisar alguns aspectos observados durante a "Oficina do Brincar",
destacando o processo de mudança em relação ao comportamento observado em
alguns dos alunos participantes.
DESCRIÇÃO DA EXPERIÊNCIA
A experiência foi realizada com um grupo formado por cinco
professoras de primeira série e 28 alunos com idades entre 7 e 9 anos, durante
o segundo semestre letivo de 2000. Esses alunos foram indicados pelas
professoras como necessitando de aulas de reforço porque apresentavam
dificuldades de aprendizagem. A proposta consistia em oferecer o reforço
através de atividades lúdicas. Essas atividades seriam desenvolvidas em um
espaço que seria construído de acordo com as necessidades das crianças, das
professoras e minhas enquanto pesquisadora (o projeto também contou com a
colaboração de duas alunas estagiárias de psicologia). Seriam, portanto,
encontros com atividades diversificadas abrangendo o reconhecimento, no aluno,
de suas potencialidades de aprendizagem e suas particularidades como sujeito,
não havendo conteúdos específicos. Sendo assim, enquanto pesquisadora, eu tinha
como objetivo analisar o processo de subjetivação daqueles alunos nesse espaço
que passamos a chamar de "Oficina do Brincar". Nos encontrávamos uma
vez por semana, durante o período da tarde, e a cada quinze dias tínhamos uma
reunião com as professoras para discutirmos o andamento do trabalho, avaliá-lo
e planejarmos novas ações.
Iniciamos os trabalhos com uma discussão sobre o entendimento
do que estávamos chamando de atividade lúdica. Apesar da aceitação do trabalho,
as professoras se mostravam bastante descrentes da possibilidade de se fazer
alguma coisa por aquelas crianças. Elas sempre repetiam que já haviam tentado
"de tudo". Diziam que algumas das crianças eram até "portadoras
de deficiências mentais e de surdez". Ainda que estivéssemos no início do
segundo semestre, as professoras já diziam estar cansadas e bastante
desanimadas com a sala de aula e a escola como um todo. Atribuíam o desânimo à
"falta de interesse dos alunos para aprender". Para algumas, a
proposta da atividade lúdica poderia trazer alguma coisa de diferente, mas
tinham dúvidas se não seria melhor o reforço "tradicional", enfocando
o conteúdo curricular. Por isso, achamos importante esclarecer nossa visão
sobre a atividade lúdica e também conhecer a opinião do grupo antes de
começarmos as atividades.
RELATO DAS OBSERVAÇÕES NA "OFICINA DO BRINCAR"
Partindo da visão de que o brincar possibilita o
desenvolvimento do aluno integralmente na sua subjetividade e que, portanto,
não é apenas um instrumento didático facilitador para o aprendizado de
conteúdos curriculares, passaremos a analisar alguns aspectos observados
durante a "Oficina do Brincar", destacando o processo de mudança em
relação ao comportamento observado nos alunos participantes.
DIFICULDADE NA UTILIZAÇÃO DO ESPAÇO LÚDICO PELAS PROFESSORAS
O nosso primeiro encontro na "Oficina do Brincar"
com as professoras e os alunos mostrou que apesar de termos discutido diversas
vezes sobre o objetivo dessas oficinas, as professoras não haviam entendido que
naquele espaço os alunos fariam suas escolhas das atividades que quisessem a
partir de alguns jogos, brincadeiras, livros e material para desenhar. Isso
ficou claro no primeiro dia, quando elas arrumaram as carteiras para que os
alunos se sentassem como se estivessem na sala de aula e pediam para que
aguardassem em silêncio, evidenciando uma dificuldade em utilizar, na escola,
um espaço lúdico, o que também pareceu estranho para os alunos. No primeiro
momento, eles se mostraram bastante tímidos, calados e pareciam não estar
entendendo o que era para fazer. As professoras também não estavam à vontade e
se aproximavam dos seus alunos pedindo que prestassem atenção no que ia ser
dito. Comecei com uma dinâmica de apresentação na qual cada um tinha que falar
o nome e alguma coisa de um colega. Aos poucos foram relaxando e alguns
chegaram a ficar bem descontraídos. Em seguida, apresentei os jogos, as
brincadeiras, lápis, papéis e alguns livros que havia levado e disse que eles
podiam escolher qualquer coisa para fazer. Eles não tomaram iniciativa e,
então, propus um jogo do qual todos pudessem participar. Foi interessante
observar que a situação de liberdade de escolha era tão inusitada que eles
ficaram paralisados sem saber aproveitá-la. No início, os alunos participaram
do jogo timidamente, mas aos poucos foram descontraindo e, no final, já
mostravam um certo entusiasmo. As professoras ajudavam seus alunos e muitas
vezes resolviam por eles o que fazer no jogo.
No segundo encontro, levamos um material para fazer os
crachás com os nossos nomes. Uma professora ia escrevendo os nomes e pedimos
para que cada um fosse amarrando o cordão em volta do pescoço. Eles mostraram
interesse e naturalmente ajudavam aqueles com mais dificuldades. Eles fizeram
comentários sobre o fato de estarmos usando também os crachás. Colocamos os
nossos nomes e a partir desse dia os alunos começaram a nos chamar pelo nome,
sem o "tia". Depois de algum tempo, as professoras se deram conta de
que nas oficinas os alunos não as chamavam por tia.
OBEDECER OU ESCOLHER?
Valter, um aluno da primeira série, diagnosticado como tendo
problemas de aprendizagem por causa de deficiência auditiva, mostrou-se
cooperativo ajudando os colegas com o crachá. Não me pareceu ter nenhuma
dificuldade para nos escutar. Sua professora, Elizabete, fez comentários
elogiando-o, mostrando espanto ao vê-lo se comportando daquela maneira. Ela
achava que ele também tinha problema de memória e por isso não conseguia
aprender. Os alunos, ainda um pouco tímidos, brincaram com os jogos que
havíamos colocado em alguns cantos da sala, permanecendo na mesma brincadeira
durante todo o tempo. A professora Elizabete achou que eles estavam muito tempo
fazendo a mesma coisa e disse que seria bom aproveitarem para desenhar. Os
alunos pareciam estar se divertindo com os jogos, mas prontamente aceitaram a
sugestão. Nesse momento, aproveitei para dizer que naquele lugar eles podiam
escolher o que quisessem e eles disseram que queriam desenhar. Não ficou muito
claro se eles realmente queriam desenhar ou se acataram a idéia como um
comando. As professoras não permitiram o desenho livre, explicando que eles
deveriam desenhar primeiro com lápis preto e depois pintar com os coloridos,
pois se errassem podiam apagar. Mais uma vez, intervim dizendo que às vezes
eles podiam achar melhor desenhar primeiro e outras vezes usar direto os lápis
coloridos. Valter coloriu o papel, aparentemente, sem nenhum propósito, criando
algo parecido com um mosaico que me fez lembrar Picasso. Recolhi os desenhos e
observando a pintura do Valter, decidi levar um livro de quadros famosos do
Picasso no encontro seguinte para mostrar maneiras distintas de se expressar
através do desenho.
Comecei o encontro falando sobre Picasso e fui mostrando o
livro com alguns de seus quadros em suas diferentes fases. No início, os alunos
e as professoras pouco falavam. Então, fui chamando a atenção para alguns
detalhes fazendo comentários sobre o que eu achava dos quadros. Mostrava-os
dizendo o nome dado por Picasso e às vezes pedia para que dissessem como
achariam que seria o nome do quadro. Minha intenção era mostrar que o pintor
fazia o quadro do seu jeito e o que podia parecer para nós uma coisa, podia ser
outra para o autor. Também destaquei a idéia de que as coisas não precisavam
ser representadas de uma única maneira. Aos poucos, eles também começaram a
opinar e concordavam ou não com o que eu estava dizendo. Demorou mais tempo,
mas as professoras também lentamente começaram a fazer comentários dando suas
opiniões. Depois pedi licença a Valter para mostrar seu desenho e perguntei se
ele tinha pensado em desenhar alguma coisa. Ele contou que aquele era o desenho
da sua casa. Algumas professoras riram, porém os colegas ficaram sérios.
Depois, os que foram desenhar fizeram suas casas. Uns desenharam como se fosse
uma "planta baixa" e outros apenas a fachada da casa. Conversei com
alguns alunos sobre seus desenhos. Aos poucos, os alunos começaram a participar
com mais interesse nas atividades, mostrando iniciativa e faziam suas escolhas
frente às opções apresentadas.
Pedia às professoras que ajudassem com os jogos. No início,
elas não conseguiam brincar com os alunos demonstrando impaciência em aceitar
as dificuldades deles com alguns jogos. Por exemplo, no dominó elas olhavam as
peças dos alunos e se adiantavam dizendo qual delas ele deveria colocar.
AQUECIMENTO
Nos encontros seguintes, passei a começar a oficina sempre
falando de um pintor famoso, mostrando algumas de suas obras através dos livros
que levava. Essa foi a forma encontrada para servir como "um
aquecimento" nos nossos encontros de maneira a descontrairmos. Por fim,
vimos livros sobre Picasso, Van Gogh, Renoir, Monet, um livro sobre os
impressionistas, um sobre desenhos e pinturas de crianças mexicanas retratando
o seu país, Botero, Modigliani, Miró e Velasquez. A partir desses livros
surgiram momentos muito interessantes criados pelos alunos. Por exemplo,
desenhos a partir de temas dos livros; discussões: sobre mulher bonita (de uma
maneira geral eles não gostaram das figuras exageradas de Botero), sobre sexo
(a partir dos nus artísticos), sobre modos de se vestir (principalmente a
partir das vestimentas das crianças retratadas por Velasquez) e sobre
diferentes técnicas de pintar. Criamos também uma oficina para a produção de
seus auto-retratos.
Depois de quase dois meses de oficina, Valter e Danilo
(diagnosticado pela equipe psicopedagógica da Fundação Educacional como
deficiente) trouxeram recortes de revistas com quadros dizendo que eram
parecidos com os dos livros que eu levava. Mostrei na nossa roda inicial e esse
fato se repetiu em outros dias quando eles também trouxeram recortes de jornal
com histórias para eu ler. Uma delas, sobre uns meninos que estavam apedrejando
umas rãs. Houve muita participação dos alunos com muitas perguntas
interessantes. Alunos como Alice e Tadeu, que são muito calados, surpreenderam
suas professoras pelo tanto que falavam e faziam perguntas
Em vários encontros, alguns alunos pediam para escrever e
outros chegaram a fazer cópias dos livros dos pintores que em sua maioria eram em francês. Eles se
sentiam muito importantes fazendo essas cópias em outra língua. Também copiavam
palavras dos jogos e brincávamos muito de "forca". Nesses momentos,
as professoras se mostravam mais à vontade para estimulá-los a escrever.
A FALA SOBRE A PRÓPRIA PRODUÇÃO
A partir de um dado momento, os alunos mostraram necessidade
de falar sobre seus desenhos, o que queriam dizer, como tinham feito e
perguntavam o que achávamos deles. Fizeram comentários sobre os auto-retratos
vistos nos livros e assim criamos uma oficina para realizar os seus. Para fazer
o auto-retrato, um aluno disse que não conseguia porque não estava se vendo.
Então, emprestei-lhe um espelho e, assim como os colegas, mirava-se e
desenhava. Uma aluna de cabelos lisos se retratou de cabelos encaracolados. Sua
professora viu e perguntou porque ela tinha feito daquele jeito. Então
respondeu que aquela era ela quando fosse grande porque queria ser igual à
professora com os cabelos encaracolados.
LEITURA E ESCRITA
Como um dos jogos era com letras, muitas vezes os alunos e as
professoras acabavam por priorizá-los. Aos poucos, os alunos foram preferindo
brincar sempre com jogos que envolviam as letras criando novos jogos. Então,
passamos a brincar com fichas de sílabas para formar palavras. Eles ficaram
interessados e logo passaram a juntar as sílabas formando palavras que reconheciam,
mas também formavam palavras sem sentido o que fazia com que se divertissem
mostrando aos colegas os "palavrões" que obtinham. O interessante foi
que assim eles liam todas as sílabas. Um dia um dos alunos foi juntando sílabas
de um lado da sala ao outro. Então, os outros se aproximaram e já criaram uma
regra de cada um ter que formar uma fileira de sílabas e depois ler. Eles riam
muito com os sons esquisitos produzidos. As professoras preferiam que eles
formassem palavras com significados que pudessem reconhecer e depois copiassem
no papel. No começo, eles faziam como elas queriam, mas depois preferiam formar
os "palavrões", como costumavam dizer, sem ter que copiá-los. Valter
mostrou a sua professora que tinha formado a palavra BOLA e ela lhe pediu que copiasse
no papel. Ele escreveu com muita dificuldade e, no final, suspirou sacudindo o
braço mostrando-se bastante cansado. Além do jogo com letras, os alunos
mostravam, de maneira geral, uma preferência pelos jogos de memória e pelo
dominó.
PRODUÇÃO DE TEXTO
Em uma oficina produzimos um texto depois de termos lido um
livro com uma pequena história. O interessante da atividade foi que a criação
desse texto foi feita com frases copiadas do texto de origem. Os alunos
mostraram uma capacidade de memória surpreendente, mas as professoras acharam
ruim eles não terem inventado outra história. Todos eles quiseram copiar a
história e Valter e Danilo mostraram muita dificuldade, mas estavam tentando.
Eles ficavam tensos e quando não conseguiam ficavam nervosos e como as
professoras diziam, logo desis-tiam. Fui passando pelas mesas e tentei
acalmá-los pegando em suas mãos, fazendo as letras com eles. Aos poucos foram
conseguindo, mas o esforço era tão grande que chegavam ao cansaço físico.
Depois dei a idéia para que desenhassem alguma coisa sobre a história e
prontamente eles o fizeram. Outros alunos disseram que não conseguiam desenhar
e pediram para copiar passando o lápis na folha por cima do desenho do livro.
As professoras acharam que não devíamos deixar que fizessem isso, mas eles
pediram e elas acabaram concordando. Alguns demoravam muito com o livro e
criou-se uma disputa entre eles acerca do tempo que cada um deveria ter para
copiar. Por fim, vários deles resolveram desenhar sem copiar. Parecia haver sempre
uma preocupação das professoras para que os alunos fizessem as coisas diferente
dos modelos.
Danilo começou a se mostrar mais falante, mais participativo,
discordando de algumas atividades. Um dia, quando eu estava fazendo mais fichas
com sílabas, ele disse que o meu "J" não estava correto e que iria
fazer um, do jeito dele, que era o certo. Na apresentação do livro sobre os
impressionistas, Danilo, que no início das oficinas seria encaminhado para o
ensino especial por sua professora, disse que Renoir era o mais parecido com
Monet, mostrando os quadros que achava parecidos (principalmente os que tinham
flores). Ele identificou um quadro do Renoir dizendo que já o conhecia do outro
livro que tinha levado e Valter reconheceu um do Picasso e disse que ele era
diferente dos outros impressionistas: "Renoir parece mais com Monet do que
o Picasso". Valter também quis mostrar que a ponte do quadro de Monet era
parecida com outra de outro livro que tinha levado.
PREFERÊNCIAS ESTÉTICAS
A cada oficina que passava os alunos se mostravam mais
descontraídos, mais soltos com uma postura mais autônoma e crítica e ficava
mais divertido brincar com eles pois estavam sempre dizendo muitas
"gracinhas", o que nos levava a estar sempre rindo. Quando chegavam
alunos novos percebíamos com facilidade a diferença de comportamento em relação
à postura mais autônoma e crítica, principalmente quando estavam vendo os
livros de pinturas. Os mais antigos se posicionavam com mais desenvoltura e
emitiam suas opiniões elegendo os quadros mais bonitos e alguns já começavam a
justificar suas preferências. Heitor, um aluno muito calado, surpreendeu sua
professora ao reconhecer figuras nos desenhos abstratos. No jogo de dominó eles
imitavam os adultos na maneira de pegar as peças e bater na mesa. Uma vez, uma
professora comentou que eles estavam fazendo muito barulho para jogar, então
Jair respondeu que era assim mesmo que tinha que se jogar, "é do
jogo". Jair começou a participar das oficinas depois de um tempo, teve um
pouco de dificuldade para se entrosar com o grupo, mas aos poucos foi falando e
se interessando pelos livros. Quando estava vendo o livro do Velásquez fez
questão de mostrar um quadro dizendo que era "uma natureza morta".
Mas, não era como o autor tinha definido, então expliquei que parecia uma
natureza morta por causa das frutas em cima de uma mesa, mas havia umas pessoas
em volta da mesa e o autor tinha chamado o quadro justamente de "Pessoas
em volta da mesa". Logo em seguida apareceu de fato uma "natureza morta"
e ele imediatamente o identificou dizendo: "agora é natureza morta
mesmo". Sua professora achou muito engraçado e falou: "você aprendeu
mesmo o que é natureza morta". Ele ficou muito feliz e passou a se
posicionar cada vez mais com muito bom humor.
Apenas um aluno, Aluísio, em uma das oficinas, pediu para
irmos mais depressa com o livro de pinturas porque já estava passando o tempo e
ele queria brincar com os jogos. O interessante é que ele não brincava muito e
sempre estava muito sério. Quando fez seu auto-retrato os colegas comentaram
que ele tinha cara de mau, mas ele retrucou que ele não era mau, mas apenas
sério.
Alguns dos alunos que já sabiam escrever, deram-me desenhos
com dedicatória. Felício fez um parabenizando o trabalho que eu estava fazendo
com eles.
REFLEXOS NA VIDA FAMILIAR
No último mês, as professoras comentaram que várias mães e
até mesmo uma avó estavam vindo à escola e mostravam interesse em conversar
sobre seus filhos. Queriam contar o que eles estavam fazendo em casa e como
estavam mais calmos. Esse fato de estarem mais calmos estava sendo observado
pelas professoras em sala de aula, o que fez com que eles consiguissem terminar
a tarefa no mesmo tempo que os outros.
A partir do que aconteceu nas oficinas, pudemos levantar
algumas considerações em relação ao nosso pressuposto de que a brincadeira
favorece o desenvolvimento integral do aluno na sua subjetividade,
principalmente levando-se em consideração o que foi relatado pelas professoras
nas discussões avaliativas das oficinas.
REUNIÕES COM AS PROFESSORAS: DISCUSSÕES AVALIATIVAS DAS
OFICINAS
As reuniões quinzenais com as professoras sempre contavam com
a presença de outras professoras que não faziam parte das oficinas, mas achavam
interessante e proveitoso participar das discussões. Esse fato tinha uma
relevante importância, ao meu ver, uma vez que mostra a diferença de postura
daquelas envolvidas no processo e as que não estão. Muitas vezes, as discussões
se davam na questão da descrença do que estava acontecendo, ou seja, as
professoras das oficinas se empolgavam com o que estava acontecendo e falavam
das mudanças dos alunos com tanta empolgação que as outras acabavam reagindo
dizendo que isso só era possível dado ao pequeno número de participantes. Em
outras ocasiões, quando eu apresentava questões teóricas, as professoras das
oficinas eram as que faziam análises reflexivas com o que acontecia nas
oficinas.
Desde o início, as professoras perceberam que nas oficinas
não estariam trabalhando com conteúdos específicos de sala de aula e isso fez
com que se preocupassem devido às cobranças que poderiam ser feitas pela
coordenação e pela direção. Elas argumentavam que no final do ano o importante
para os diretores era ver se os alunos estavam no nível dos demais e se
poderiam passar de ano. Não importaria se estivessem mais autônomos, mais
criativos e nem mesmo mais interessados em aprender os conteúdos exigidos. Mas,
eu percebia que essa preocupação não era apenas com a direção. Havia também uma
angústia delas em relação a acreditar no que estavam fazendo e sempre diziam
que "os alunos estão mudando muito, mesmo em sala de aula, mas ainda não
sabem ler e escrever". A professora Elizabete era a única que desde o
início dizia: "é isso mesmo, demora, mas a coisa vai acontecer naturalmente".
Nesses momentos, aproveitava para trazer elementos das teorias do
desenvolvimento e da aprendizagem baseadas em Vygotsky e Wallon para
fundamentar a prática pedagógica.
O discurso das professoras em relação às dificuldades dos
alunos era sempre o de culpar a família que não fazia nada pelos filhos. Elas
diziam que os alunos já vêm de casa com "maus hábitos, são mal educados e
agressivos" e que não podem fazer nada para mudar, pois precisaria mudar a
família primeiro. A partir do processo de mudança ocorrido nas oficinas, as
professoras, em sua coerência, atribuíam as mudanças dos alunos ao simples fato
deles terem mudado. Elas não se viam como sujeitos envolvidos no processo dessa
mudança. Então, passei a fazer discussões em que pudessem perceber que todos
nós estávamos mudando e que isso se dá num processo muito complexo que não cabe
a um fato determinado. O crescimento daqueles alunos em relação ao que
estávamos valorizando no processo de aprendizagem estava ocorrendo por uma
série de fatores. Essas mudanças, por fim, acabaram se refletindo nas famílias,
no fato de elas estarem vindo à escola com mais freqüência. E, mais uma vez, as
professoras não viam a mudança no relacionamento com a família. Comentei que
fica mais fácil para os pais virem à escola quando o professor diz que seu
filho está aprendendo do que quando é para ouvir que ele vai ser visto por uma
psicóloga para passar por uma avaliação psicopedagógica porque tem problemas de
aprendizagem.
Em relação às oficinas, as professoras admitiram ter
dificuldades em saber brincar com os alunos e diziam ser muito difícil esperar
que eles tomassem a iniciativa. Reconheceram que os alunos faziam coisas nas
oficinas que não conseguiam em sala de aula. Por exemplo, eles não desenhavam,
não queriam ilustrar os trabalhos e não participavam das aulas da mesma forma,
opinando sobre o que estavam aprendendo. Nas oficinas, elas diziam que eles
eram disciplinados, mas quando estavam com os colegas, em sala de aula, se
comportavam de forma bem diferente. Percebia que elas ainda se sentiam
inseguras para mudar de postura em sala de aula, mas reconheciam que os alunos
estavam mudando e começavam a aceitar que seriam capazes de aprender. Já não
falavam mais de mandá-los para o ensino especial. O único problema era o tempo,
pois estava chegando o final do ano e elas não sabiam se eles deviam ir para a
série seguinte ou se deviam repetir o ano. Discutimos muito sobre isso. Umas
pensavam ser importante eles não ficarem retidos na mesma série, já que
acreditavam que estavam avançando e, portanto, podiam acompanhar a turma.
Outras eram de opinião que seria preciso repetir o ano para que aprendessem
"melhor" e não viriam a ter problemas no ano seguinte com outra
professora. O importante era que todas reconheciam que os alunos haviam mudado
e também reconheciam que os momentos lúdicos vivenciados nas oficinas também
podiam ser vividos em sala de aula. Ou seja, reconheciam que seria importante
proporcionar momentos de descontração para os alunos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalizando, poderíamos dizer que as oficinas do brincar
permitiram um espaço de descontração onde os alunos estabeleceram novas
relações, novas descobertas que permitiram o seu aprendizado e o
desenvolvimento a partir dessas mudanças, nas relações entre professora e aluno
e aluno-aluno. As oficinas permitiram a mudança de postura tanto dos alunos
como das professoras diante das situações de sala de aula, fazendo com que a
aprendizagem despertasse o interesse, e que surgissem novas zonas de sentido
que estimulavam a curiosidade e a criatividade, pois à medida que os alunos e
as professoras vivenciavam essas experiências nas oficinas eles
transformavam-nas representando-as de forma subjetiva.
Com os livros de arte, estávamos utilizando uma abordagem
projetiva como forma de estimular a liberdade e a espontaneidade da expressão
dos alunos. Os livros estimulavam respostas livres que permitiam às professoras
um maior conhecimento das opiniões e sentimentos dos alunos expressos através
das suas atitudes. Isso mostra o caráter de ficção na atividade lúdica e seu
papel catártico como reconhece Wallon (1941/1968) ao analisar a teoria de
Freud.
Não tínhamos como objetivo fazer um estudo sobre aquelas
crianças. No entanto, partindo da idéia desenvolvida por Wallon (1941/1968) de
que os jogos estimulam funções mentais importantes para o aprendizado, nosso
objetivo era mostrar às professoras que através do "brincar" era
possível fazê-las aprender o conteúdo de sala de aula.
A dificuldade das professoras em brincar com seus alunos,
observada nas oficinas, pode evidenciar a crença de que o brincar se opõe ao
trabalho sério como nos mostra Wallon (1941/1968). Sendo assim, o momento de
descontração pode ser visto como uma infração ao trabalho pedagógico
"sério" que deve ser desenvolvido em sala de aula. No entanto, o que
constatamos foi que a brincadeira permitiu aos alunos o desenvolvimento de suas
funções mentais ao favorecer a transposição de ações simuladas para as
factuais. Como exemplo podemos citar o jogo com a formação de palavras no qual
a criança, em situação descontraída, construía suas hipóteses sobre a escrita.
Acreditamos que o momento lúdico, como espaço de
descontração, na escola, deve ser visto como constituinte do sujeito, o qual, a
partir de vivências que experimenta, constrói suas relações interpessoais. O
sujeito é desenvolvimento e processualidade permanente sem nunca ficar estático
em sua condição subjetiva atual. Então, a escola, ao oferecer espaços como
esse, possibilita novas oportunidades para o desenvolvimento da subjetividade.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação.
São Paulo: Summus, 1984. [ Links ]
DOLTO, F. As etapas decisivas da infância. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. [ Links ]
FREUD, S. Mas alla del principio del placer. In: ______.
Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1920/1981. vol. III. [ Links ]
GONZALEZ REY, F. L. La Investigacion Cualitativa
en Psicología. São Paulo: EDUC, 1999. [ Links ]
HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura.
São Paulo: USP, 1934/1971. [ Links ]
ROZA, E. S. Quando o brincar é dizer: a experiência
psicanalítica na infância. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999. [ Links ]
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo:
Martins Fontes, 1984. [ Links ]
WALLON, H. L'évolution psychologique
de l'enfant. Paris: Armand Colin, 1941/1968. [ Links ]
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro:
Imago, 1975. [ Links ]
Fonte:
PEDROZA. Regina Lúcia. Aprendizagem e subjetividade: uma construção a partir do brincar Rev. Dep. Psicol.,UFF v.17 n.2 Niterói jul./dez. 2005
Nenhum comentário:
Postar um comentário