Imagem: internet
O movimento corporal sempre foi dentro do espaço escolar uma moeda de troca. A imobilidade física funciona como punição e a liberdade de se movimentar como prêmio. Estas atitudes evidenciam que o movimento é sinônimo de prazer e a imobilidade, de desconforto. Mas se é através do movimento que o indivíduo se manifesta, que indivíduos iremos formar se impedimos sua expressão? O presente texto abordará a questão da introdução da dança no espaço escolar, relatando e refletindo sobre o trabalho que é desenvolvido no curso de Licenciatura em Dança da Unicamp e partilhando das experiências de professores da rede de ensino que fizeram o curso de "atividades corporais artísticas para professores da educação formal" em Tupã (SP).
O corpo no espaço escolar
O indivíduo age no mundo através de seu corpo, mais especificamente através do movimento. É o movimento corporal que possibilita às pessoas se comunicarem, trabalharem, aprenderem, sentirem o mundo e serem sentidos. No entanto, há um preconceito contra o movimento. Solange Arruda, na introdução de seu livro Arte do movimento, afirma que "é mais chic, educado, correto, civilizado e intelectual permanecer rígido. Os adultos, em sua maioria, não se movimentam e reprimem a soltura das crianças."1 Isso começa em casa e se prolonga na escola.
Embora conscientes de que o
corpo é o veículo através do qual o indivíduo se expressa, o movimento corporal
humano acaba ficando dentro da escola, restrito a momentos precisos como as
aulas de educação física e o horário do recreio. Nas demais atividades em sala,
a criança deve permanecer sentada em sua cadeira, em silêncio e olhando para a
frente. Ciro Giordano Bruni afirmava a esse respeito que "virou quase
regra estabelecer entre a arte e a ciência uma lastimável distinção: a primeira
se aprende como uma atividade lúdica e a segunda, de uma maneira séria e constrangedora."2
Sua crítica não se fixa apenas na questão da ausência do lúdico nas disciplinas
científicas da escola, mas também na ausência de seriedade nas disciplinas
artísticas, comportamento que tende a acentuar a visão de que o ensino de arte
é supérfluo.
A noção de disciplina na
escola sempre foi entendida como "não-movimento". As crianças educadas
e comportadas eram aquelas que simplesmente não se moviam. O modelo
escolar-militar da primeira metade do século XX era aplicado desde o momento em
que a criança chegava na escola. As filas por ordem de tamanho para se
dirigirem às salas de aula, o levantar-se cada vez que o diretor ou supervisor
de ensino entrava na sala etc. Atualmente, são raros os estabelecimentos
escolares que mantêm este tipo de atitude, encontrado ainda apenas em escolas
de cunho religioso e em algumas escolas públicas de cidades pequenas do interior
do estado.
Nas escolas da rede pública das grandes cidades, esta realidade já não existe. Apesar da ausência destas atitudes disciplinares, a idéia do não-movimento como conceito de bom-comportamento prevalece. Muitas escolas aboliram as filas e os demais símbolos de respeito a diretores e professores; no entanto, foram criadas outras maneiras de se limitar o corpo.
Nas escolas da rede pública das grandes cidades, esta realidade já não existe. Apesar da ausência destas atitudes disciplinares, a idéia do não-movimento como conceito de bom-comportamento prevalece. Muitas escolas aboliram as filas e os demais símbolos de respeito a diretores e professores; no entanto, foram criadas outras maneiras de se limitar o corpo.
O movimento corporal sempre
funcionou como uma moeda de troca. Se observarmos brevemente as atitudes
disciplinares que continuam sendo utilizadas hoje em dia nas escolas,
percebemos que não nos diferenciamos muito das famosas "palmatórias"
da época de nossos avós. Professores e diretores lançam mão da imobilidade
física como punição e da liberdade de se movimentar como prêmio. Constantemente,
os alunos indisciplinados (lembrando que muitas vezes o que define uma criança
indisciplinada é exatamente o seu excesso de movimento) são impedidos de
realizar atividades no pátio, seja através da proibição de usufruir do horário
do recreio, seja através do impedimento de participar da aula de educação
física, enquanto que aquele que se comporta pode ir ao pátio mais cedo para
brincar. Estas atitudes evidenciam que o movimento é sinônimo de prazer e a
imobilidade, de desconforto.
Os cursos de Educação
Artística, cujo caráter "menos formal" poderiam possibilitar uma
maior mobilidade das crianças em sala de aula, tendem a priorizar os trabalhos
em artes plásticas (desenho, pintura e algumas vezes escultura), atividades
onde o aluno acaba tendo de permanecer sentado. Embora a LDB 9394/96 garanta o
ensino de Arte como componente curricular obrigatório da Educação Básica
representado por várias linguagens – música, dança, teatro e artes visuais –,
raramente a dança, a expressão corporal, a mímica, a música e o teatro são
abordados, seja pela falta de especialistas da área nas escolas, seja pelo
despreparo do professor.
Apesar destas atitudes
estarem muito presentes, algumas experiências (que caminham exatamente no
sentido oposto) têm nos mostrado o quanto o movimento pode contribuir para se
criar no espaço escolar um outro ambiente. A introdução de atividades corporais
artísticas na escola, ou seja, a realização de trabalhos de dança-educativa ou
dança-expressiva, como são comumente chamadas (embora não goste muito destes
nomes, afinal, toda dança é educativa e expressiva), tem mudado
significativamente as atitudes de crianças e professores na escola. A dança no
espaço escolar busca o desenvolvimento não apenas das capacidades motoras das
crianças e adolescentes, como de suas capacidades imaginativas e criativas. As
atividades de dança se diferenciam daquelas normalmente propostas pela educação
física, pois não caracterizam o corpo da criança como um apanhado de alavancas
e articulações do tecnicismo esportivo, nem apresentam um caráter competitivo,
comumente presente nos jogos desportivos. Ao contrário, o corpo expressa suas
emoções e estas podem ser compartilhadas com outras crianças que participam de
uma coreografia de grupo.
A dança e seus diferentes fins
Quando se fala em dança na
escola, milhares de imagens começam a povoar nossas mentes. Afinal, de que
dança estamos falando? Ao chegarmos nas instituições, costumamos interrogar as
crianças e os adolescentes sobre sua compreensão de dança. É interessante
observar que, se há alguns anos atrás, a primeira imagem que vinha à mente
destes jovens era a figura da bailarina clássica nas pontas dos pés, hoje essa
imagem (embora ainda presente) já está sendo substituída por outras trazidas
pela mídia. As respostas variam entre as dançarinas do "Tchan" e
algumas pop stars norte-americanas (nota-se a predominância da figura
feminina). Quando interrogados, então, sobre o que querem aprender numa aula de
dança, as respostas se multiplicam, indo do ballet clássico às danças de
rua.
No próprio curso de
Licenciatura em Dança da Unicamp também encontramos diferentes expectativas por
parte dos alunos. Uns têm interesse direto em trabalhar a dança nas escolas da
rede de ensino, logo, a dança dita "educativa". Outros, em trabalhar
em escolas especializadas como conservatórios e academias, com técnicas de
dança específicas para a formação do profissional. Há ainda os que preferem
trabalhar o aspecto social da dança, ou seja, a dança como atividade de
reinserção social em programas de apoio a pessoas desfavorecidas. Todas estas
expectativas não podem ser ignoradas. Elas revelam a própria abrangência da
área de dança e temos, assim, de aprender a lidar com elas, sem se perder de
vista o objetivo das licenciaturas, ou seja, habilitar o futuro profissional
para trabalhar no ensino fundamental e médio.
Jacqueline Robinson,3
bailarina e educadora francesa, elaborou um diagrama onde indica de forma clara
a gênese e as diferentes aplicações da dança no mundo contemporâneo.
Toda dança, não importa
qual a estética que lhe é inerente, surge da profundeza do ser humano, ou, como
Robinson nomeou, surge da "magia" e adquire diversas funções a partir
de três motivações principais: a expressão, o espetáculo e a recreação ou
jogo.
A expressão é a motivação
mais significativa da dança, sendo representada na árvore de Robinson como o
tronco principal. É nesse tronco que se situam o teatro, a dança contemporânea,
a educação e o lazer. Ao redor deste tronco principal, com uma bifurcação para
a recreação e outra para o espetáculo, estão as danças populares. Robinson fez
esta divisão, uma vez que estas manifestações podem ser a expressão de uma
comunidade, como rito ou jogo, e ainda serem exploradas através de espetáculos.
Há ainda as manifestações populares consideradas "puras", ou seja,
que não perderam seu caráter original de rito, que Robinson localizou num
tronco à parte, entre a recreação e a expressão, chamando-o de "danças
primitivas", na falta de uma melhor expressão para intitulá-las.
No tronco recreação
encontramos as danças amadoras, as danças de salão, a ginástica rítmica e o jazz,
todas técnicas praticadas por indivíduos sem interesse profissional. Percebe-se
que o jazz teve sua origem na recreação, profissionalizando-se
posteriormente, ao encontrar seu caráter espetacular. O inverso aconteceu com a
dança clássica. De origem estritamente espetacular e profissional, com o
decorrer dos anos ganhou adeptos amadores que buscam essa rígida técnica como
complemento da educação corporal formal.
Numa tentativa de atualizar
esta árvore, poderíamos acrescentar muitas outras danças: Algumas danças
populares brasileiras, como o forró, o samba, a lambada e recentemente o axé,
que também conquistaram os espaços dos cursos de dança de salão ao lado das
imortais valsa, tango e bolero. As danças provenientes de regiões e países
específicos, como a dança do ventre, a dança flamenca, o sapateado americano e
irlandês (tão em voga atualmente) e as danças de rua (ou street dance),
poderiam ser introduzidas como um galho que se inicia nas expressões culturais
(folclóricas) e se ramifica tanto para o campo profissional do espetáculo,
quanto para a área de recreação (amadora). Um bom exemplo são as danças de rua.
Elas tiveram origem nos guetos negros norte-americanos, como forma de protesto,
e ganharam adeptos no mundo todo. Como o rap, o funk e o break,
muitas dessas danças já saíram das ruas e invadiram as academias e palcos
teatrais.
Neste diagrama, fica
evidente a diferenciação que é feita entre o fazer amador, o profissional, o
educativo e as manifestações culturais. Mas seria o ensino de dança um só para
todos? No curso de Licenciatura em Dança, deixamos em aberto a opção estética.
O que importa não é a linha escolhida, mas como através dela pode-se trabalhar
os elementos que consideramos importantes para o desenvolvimento integral do
indivíduo na escola.
Não sem problemas...
Em instituições onde a
dança começou a ser trabalhada, professores e diretores sentiram a diferença de
comportamento de seus alunos. A começar pelo número de faltas, que diminuiu
razoavelmente. A participação dos alunos em outras atividades promovidas pela
escola (festas, semanas culturais e científicas, gincanas etc.) começou a ser
mais efetiva. De maneira geral, os professores são unânimes ao afirmar que o
interesse do aluno pelo ensino melhorou, como se, através das atividades de
dança na escola, o aluno tivesse reencontrado o prazer de estar nesta
instituição.
No entanto, tudo isso não
se deu sem problemas. A experiência com os alunos estagiários da Licenciatura
em Dança da Unicamp tem mostrado que, se a dança está aos poucos conquistando
um espaço diferenciado dentro da formação escolar fundamental, muitas barreiras
ainda têm que ser derrubadas. A primeira delas é a receptividade dos próprios
professores da escola. Alguns tendem a "menosprezar" o trabalho,
considerando a dança um "luxo" de menor importância no conjunto das
disciplinas oferecidas pelo currículo. Estes professores acabam assumindo
posturas que dificultam o trabalho dos estagiários, como, por exemplo,
intitularem o trabalho "aula de recreação". Ao ouvirem esta
nomenclatura, os alunos saem correndo dispersos para o pátio e ninguém consegue
mais reagrupá-los para a aula. Alguns professores que aprovam a iniciativa, por
outro lado, reclamam que as crianças ficam mais agitadas nos dias em que há
atividades de dança. Assim, para "acalmar" a classe, acabam usando a
famosa "chantagem": ou vocês ficam quietos e prestam atenção, ou
não irão para a aula de dança. A segunda barreira diz respeito a um outro
tipo de preconceito, desta vez não do professor, mas do próprio aluno. Em
algumas escolas, os estagiários são obrigados a chamarem o trabalho de
"expressão corporal", pois se o nome "dança" aparece,
muitos meninos se recusam a participar da atividade por não serem "mulherzinhas"
[sic].4
No trabalho com
adolescentes, a realidade é outra. Quando interrogados sobre o que é a dança ou
sobre qual dança gostariam de aprender na escola, a maior parte dos jovens
(sobretudo os rapazes) opta pelas danças de rua5
(rap, funk, break). Apesar destas danças possuírem uma
movimentação considerada agressiva pelos adultos, elas fazem parte do universo
destes jovens. A violência é um dos temas mais explorados. Eles simulam lutas,
fazem gestos obscenos, criam na execução da coreografia grupos que se enfrentam
etc. No entanto, é interessante notar que tudo isso é a "ritualização"
da violência, não a violência em si.
Há exemplos de grupos de jovens que saíram da marginalidade através das danças de rua. Como eles mesmo afirmam: "através da dança a gente `canaliza' nossa agressividade e, assim, não precisamos mais ser violentos com ninguém".6 Dentro da dinâmica das danças de rua, para se aprender uma coreografia, os participantes devem prestar muita atenção para "pegar os passos" e depois "aprender o estilo". Como as coreografias são feitas por todos os participantes do grupo e ao longo de vários encontros, faltas não podem acontecer, senão perde-se uma parte das seqüências (que são complexas e num ritmo acelerado) e atrapalha-se o conjunto final. Assim, a disciplina e a responsabilidade são compreendidas, aprendidas e incorporadas no dia a dia destes jovens. Apesar de todos dançarem os mesmos movimentos, há momentos onde um se destaca, realizando sua "improvisação". É nesta hora que o jovem tem a oportunidade de trabalhar a sua individualidade, mostrando o seu "estilo" pessoal e sua virtuosidade, visto que é no solo que o jovem realiza as acrobacias mais complexas.
Há exemplos de grupos de jovens que saíram da marginalidade através das danças de rua. Como eles mesmo afirmam: "através da dança a gente `canaliza' nossa agressividade e, assim, não precisamos mais ser violentos com ninguém".6 Dentro da dinâmica das danças de rua, para se aprender uma coreografia, os participantes devem prestar muita atenção para "pegar os passos" e depois "aprender o estilo". Como as coreografias são feitas por todos os participantes do grupo e ao longo de vários encontros, faltas não podem acontecer, senão perde-se uma parte das seqüências (que são complexas e num ritmo acelerado) e atrapalha-se o conjunto final. Assim, a disciplina e a responsabilidade são compreendidas, aprendidas e incorporadas no dia a dia destes jovens. Apesar de todos dançarem os mesmos movimentos, há momentos onde um se destaca, realizando sua "improvisação". É nesta hora que o jovem tem a oportunidade de trabalhar a sua individualidade, mostrando o seu "estilo" pessoal e sua virtuosidade, visto que é no solo que o jovem realiza as acrobacias mais complexas.
Compartilhando experiências – oficinas
Em junho passado, aproveitando
minha visita à Tupã para participar do I Tupã-Dança,7
ministrei uma oficina "teórico-prática" de atividades corporais
artísticas para professores do ensino formal. O curso contou com a participação
de professores de educação física, educação artística, línguas, dança, e
professores de pré-escola. Havia tomado o cuidado de intitulá-la oficina
"teórico-prática" (embora não concorde com esta dicotomia
teoria/prática, nem com esta expressão que junta, separando), com o intuito de
deixar claro que haveria uma parte prática e que todos, sem exceção,
deveriam participar de todas as atividades propostas.
Alguns poucos professores
participantes esperavam receber fórmulas pré-fabricadas ou receitas prontas de
como trabalhar a dança no espaço escolar. Tinham a expectativa de aprender
alguns "passinhos" (como disseram) ou mesmo algumas coreografias para
poderem, mais tarde, transmitir a seus alunos, seja na festa junina, que se
aproximava, seja nas comemorações folclóricas do mês de agosto. Normalmente,
professores com este tipo de expectativa costumam ficar apavorados cada vez que
chega uma data comemorativa e que se vêem "obrigados" a preparar
algum evento com as crianças. Eles não acreditam em seus potenciais criativos e
preferem copiar fórmulas prontas. No entanto, havia deixado claro que este não
era o objetivo da oficina. Não havia "prato-feito" para
"pronta-entrega", onde basta telefonar que a comida chega em casa,
sem trabalho algum. Muito pelo contrário, todos teriam de erguer as mangas, pôr
a mão na massa e se sujar para "aprender fazendo". O objetivo da
oficina era proporcionar aos professores da rede de ensino a oportunidade de
aprenderem a "pensar com o corpo". E como fazer isso senão através do
próprio movimento?
As atividades práticas se
baseavam em elementos trabalhados em aulas de dança. Num primeiro momento,
focamos o desenvolvimento da consciência corporal utilizando os conceitos
oriundos da educação somática. Grosso modo, a educação somática8
é entendida como atividades onde o corpo é trabalhado de modo a integrar todos
os aspectos que o compõem: social, espiritual, psíquico, físico etc. Assim,
temos as práticas como as técnicas de Alexander, Feldenkrais, Body-Mind-Centering,
Eutonia, Fundamentals®, entre outras. Como representantes da
vertente brasileira de educação somática, temos o trabalho de Klauss Vianna e
de José Antonio Lima. Num segundo momento da oficina, trabalhamos a criação
coreográfica, através da exploração espacial, baseando-nos nos preceitos de
Rudolf von Laban (1879-1958). (Não iremos aqui discorrer longamente sobre o
trabalho desenvolvido por este reformador do movimento, visto que outros
autores ficaram incumbidos de fazê-lo. No entanto, não podemos deixar de falar
sobre ele, pois quando se pensa em dança-educativa, seu nome é um dos mais citados).
Este coreógrafo austro-húngaro e estudioso do movimento revolucionou a maneira
de se pensar o corpo em
movimento. Ele desenvolveu um método de análise do movimento,
definindo os elementos que o compõem. Elaborou igualmente um método de escrita
em dança, a Labanotiation. Seus trabalhos têm diferentes aplicações que
vão da educação da dança, da criação coreográfica ao trabalho terapêutico. Seu
trabalho foi introduzido no Brasil por Maria Duschenes.9
Acreditava-se que nesta
oficina seria muito mais salutar ensinar os professores a pensar com o corpo,
que ficar discutindo sobre o corpo, como se este fosse um objeto à parte de nós
mesmos. Ao mexer com o corpo, ao criar, ao se expressar, estes professores
estavam adquirindo informações, sensações que seguramente iriam, mais tarde,
nutrir e enriquecer suas análises e discussões teóricas. Acreditava-se que,
numa oficina, deveria oferecer-lhes o que não encontrariam em livros: a
oportunidade de tocar e ser tocado, de expressar e ser visto, de falar e ouvir
com o corpo todo. As atividades proporcionariam explorações sensoriais. O grupo
de participantes, a princípio tímido, foi aos poucos se soltando e ao final se
entregou completamente ao jogo, explorando o espaço, dançando e cantando.
Gostaria de ressaltar o
comentário de uma professora da rede pública aposentada, Gilcélia, que trabalha
atualmente no setor privado. Esta tentou escapar de uma das atividades
propostas que consistia em ser carregado pelo grupo em duas situações
distintas: com o corpo contraído e com o corpo relaxado. Apesar de sua
tentativa de fuga, não teve escapatória e foi logo carregada. Quando se
esticava no chão, aguardando ser levantada, não parava de exclamar: Vocês
não vão conseguir! Vocês não vão me agüentar! Qual não foi o seu espanto (e
também do grupo) ao perceber que estava a dois metros do chão, segura por
dezenas de mãos que a suspenderam acima do nível de suas cabeças. Ao final do
trabalho, emocionada, percebeu o quanto havia sido importante participar do
exercício, pois percebera que na verdade a imagem que tinha de si própria não
correspondia à realidade.10
Sentiu-se mais leve e feliz. Seguramente, esta sensação lhe ensinou muito mais
e foi-lhe muito mais importante que qualquer discussão teórica a respeito dos
benefícios do desenvolvimento de um trabalho corporal dentro da escola.
Os professores, ao sentirem
no corpo estas descobertas, podem compreender melhor o que se passa nos corpos
de seus alunos, crianças ou adolescentes. Ao experimentarem o prazer do
movimento e os benefícios que estes trazem, tanto para o físico quanto para o
mental, podem ver com outros olhos estas atividades na escola. E o mais
importante, ao invés de simplesmente "memorizarem" passos
coreográficos, estes professores terminaram a oficina com um instrumental muito
maior para realizarem suas próprias criações.
A educação e a fábrica de corpos
A dança na escola deve
ultrapassar a idéia de ser voltada apenas à criança e ao adolescente. Após esta
experiência com os professores da rede de ensino de Tupã, ficou mais evidente
que trabalhar com os professores é importante não apenas para a formação destes
(e para o bem estar dos mesmos, evidentemente), mas também que o corpo do
professor funciona como modelo para o aluno.
É inerente ao ser humano
sua capacidade de imitação. A criança aprende através da reprodução dos gestos
dos adultos. Marcel Mauss, sociólogo e antropólogo francês e um dos primeiros a
classificar as técnicas do corpo,11
concluiu que todas as ações humanas, desde a mais simples posição deitada (simples
entendido como mínimo esforço físico solicitado) até as ações mais elaboradas,
como nadar (que requer um treinamento específico), são técnicas adquiridas por
meio da imitação. O adulto faz e a criança copia.
O ensino da dança e das
demais artes da tradição oral é feito por meio da observação e reprodução do
observado. Na maioria das técnicas sistematizadas e codificadas, o professor
faz e o aluno imita. Poderíamos pensar que no caso da dança na escola – onde se
trabalha mais a exploração e a criação do próprio aluno que o aprendizado de
passos específicos – a imitação não está presente. No entanto, essa idéia é
equivocada. Alguns estagiários ficavam preocupados com a questão de dar
exemplos de movimentação ou de servir de modelo. No entanto, eles próprios
perceberam que, muitas vezes, em suas criações, as crianças reproduziam gestos
oriundos de grupos vistos na televisão ("dança da garrafa", da "bundinha"
etc.). Se os estagiários não são e não querem assumir um papel de modelo, a
mídia o é a todo momento. Cabe agora a cada um refletir sobre qual modelo
considera mais interessante e, sobretudo, trabalhar com as crianças o
desenvolvimento do olhar crítico.
Temos que ressaltar que não
apenas a movimentação serve de modelo. A própria postura também é objeto de
imitação. Lembro-me de um professor de dança que vivia corrigindo a postura de
seus alunos e que não sabia mais o que fazer, pois eles acabavam sempre
voltando àquela indesejada. Um dia, ele veio me procurar na tentativa de
solucionar esta questão. "O que fazer? Que tipo de exercício posso
estimular?" – perguntava. Ao vê-lo, minha resposta foi clara e curta:
"Corrija você a sua própria postura que os alunos, aos poucos, corrigirão
a deles." Não adianta o professor corrigir insistentemente a postura dos
alunos se o que lhes fala mais forte não é a palavra (verbo) e sim o modelo
vivo (corpo).
Desenvolver um trabalho
corporal com os professores teria uma dupla função: despertá-los para as
questões do corpo na escola e possibilitar a descoberta e desenvoltura de seus
próprios corpos, lembrando que, independente das disciplinas que lecionam
(português, matemática, ciências etc.), seus corpos também educam. É comum
percebermos pessoas que adquirem a maneira de gesticular daquele com quem
convive cotidianamente. Basta pensarmos nos gestos que "herdamos" de
nossos pais ou observarmos velhos casais. Há a tendência de se reproduzir a
mesma movimentação de cabeça, adquirir o mesmo "tic" ou assumir a
mesma postura. Assim, diante de uma classe de crianças, queiramos ou não, somos
sempre um modelo para a imitação pela mímesis. Dessa forma, acredito que
os cursos de formação de professores, seja a graduação em Pedagogia ou as
demais licenciaturas específicas, deveriam pensar com seriedade no oferecimento
de disciplinas de cunho artístico corporal.
Fica claro que a questão da
educação corporal não é de responsabilidade exclusiva das aulas de educação
física, nem de dança ou de expressão corporal. O corpo está em constante
desenvolvimento e aprendizado. Possibilitar ou impedir o movimento da criança e
do adolescente na escola; oferecer ou não oportunidades de exploração e criação
com o corpo; despertar ou reprimir o interesse pela dança no espaço escolar,
servir ou não de modelo... de uma forma ou de outra, estamos educando corpos.
Nós somos nosso corpo. Toda educação é educação do corpo. A ausência de uma
atividade corporal também é uma forma de educação: a educação para o
não-movimento – educação para a repressão. Em ambas as situações, a educação do
corpo está acontecendo. O que diferencia uma atitude da outra é o tipo de
indivíduo que estaremos formando. Cabe agora a cada um de nós fazer a reflexão.
Notas
2. BRUNI, Ciro Giordano. Pour une danse d'éveil
et d'initiation, le discernement de la distance, In: L'enseignement de la
danse et après!, Rencontres dans les Universités Paris V e Paris VIII,
Paris: Germs, 1998, p. 78.
4. Sobre a discussão do gênero na construção
social, ver SOUZA, E.S. e ALTMANN, H. Meninos e meninas: expectativas corporais
e implicações na educação física escolar, Cadernos Cedes nº 48, 1999.
7. I Tupã-dança – evento promovido em parceria
pela Secretaria de Estado da Cultura, Secretaria Municipal de Educação e
Cultura (Srª Joana Schelini) e Academia Maria Cristina Sismeiro Dias, 16 e 17
de junho de 2000.
8. A este respeito, ver os artigos do Caderno
Especial "Estudos do Corpo", organizado por Christine Greiner, do
GIPE-CIT, UFBA (1999) e os números 28 e 29 da Revista Nouvelles de Danse,
Bruxelas, 96/97.
9. Sobre Maria Duschenes, ver o capítulo
"As mães da modernidade" no livro Dança moderna, de Cássia
Navas e Lineu Dias, São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo,
1992.
10. Cf. Moshe Feldenkrais, O poder da
auto-transformação, São Paulo: Summus, 1978. Ele afirmava que nós agimos de
acordo com nossa auto-imagem. Na verdade temos um potencial de movimento muito
maior do que utilizamos normalmente. No entanto, a imagem que temos de nós
mesmos cria barreiras que impedem a exploração total de nossas capacidades. Ver
também, do mesmo autor: Consciência pelo movimento (1989).
11. Ver Marcel Mauss, Les techniques du corps, Journal
de Psychologie, XXXII, nº 3-4, 15 mars/15 avril, 1936, publicado
posteriormente em Sociologie et Anthropologie, Paris: PUF, 1966.
Referências bibliográficas
AGE du corps,
maturité de la danse. Actes
de la table ronde organisée par le Cratère Théâtre d'Alès, le 13 avril, 1996.
ARRUDA, Solange. Arte do
movimento. São Paulo: PW Gráficos e Editores Associados ltda., 1988.
BERTRAND, Monique & DUMONT, Mathilde. Expression
corporelle – Mouvement et pensée. Paris: Librairie
Philosophique J. Vrin, 1979.
DIAS, Linneu & NAVAS,
Cássia. Dança moderna. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura de São
Paulo, 1992.
DUPUY, Dominique. Ce que
dit le maître. In: Expérience et Transmission, Colóquio em
Clermont-Ferrand, junho 1998.
_______ . Le corps du
maître. In: ALSAN, Odette (dir.). Le corps en jeu. Paris: Edição do
CNRS, 1991.
EXPÉRIENCE et
transmission. Actes du colloque de danse, Festival de
la pensée, du 22 au 27 juin 1998, Brut de Bréton, Clermont-Ferrand, 1998.
FELDENKRAIS, Moshe. Awareness through movement.
San Francisco :
Harper Collins Publishers Inc., 1972. (Em português: Consciência
pelo movimento. São Paulo: Summus, 1977).
_______ . L'Energie et
bien-être par le mouvement. Trad.
de Lisette Rosenfeld. Paris :
Edition Dangles, 1996.
_______ . O Poder da
autotransformação. Trad. de Denise Bolanho. São Paulo: Summus, 1994.
FUX, Maria. Dança, uma
experiência de vida. São Paulo: Summus, 1986.
GODART, Hubert. A propos
des théories sur le mouvement. Marsyas, 16, 1992, p. 19-23.
_______ . Le mouvement: De
la décomposition à la recomposition. Marsyas, 25, 1993.
HERNANDEZ, Márcia. "O
corpo em-cena". Dissertação de mestrado, Departamento de Metodologia do
Ensino, Faculdade de Educação/Unicamp. Campinas , 1994.
LABAN, Rudolf. Modern educational dance.
Londres: MacDonald and Evans, 1975.
_______ . The mastery of movement. Revised by
Lisa Ullmann, Plymouth :
Northcote House, 1992. (Em português: O domínio do movimento.
Trad. de Anna Maria de Vecchi e Maria Silvia Mourão Netto, São Paulo: Summus,
1981).
LAUNAY, Isabelle. A la
recherche d'une danse moderne. Rudolf Laban – Mary Wigman. Paris:
Librairie de la Danse /Art
Nomade, Chiron, 1996.
L'ENSEIGNEMENT de la danse et après! Rencontres
dans les Universités Paris V et Paris VIII, Paris: Germs, jan. 1998.
LIMA, José Antonio,
"Movimento Corporal – A práxis da corporalidade". Dissertação de
Mestrado, Departamento de Filosofia e História da Educação, Faculdade de
Educação/Unicamp, 1994.
LOUPPE, Laurence. Poétique
de la danse contemporaine. Bruxelles: Contredanse, 1997.
_______ . Etats de corps
perdus: Le voyage historique. IO – Revue Internationale de Psychanalyse,
5, 1994.
MARSYAS.
Publicação do Institut Pédagogique de la Musique et de la Danse Contemporaines
(IPMC), Paris.
MAUSS, Marcel. Le techniques du corps. Journal de Psychologie, XXXII, nº 3-4, 15 mars/15 avril, 1936. Comunicação
apresentada à Société de Psychologie em 17 maio 1934, In: Sociologie et
Anthropologie, PUF, 1966, p. 370-371.
NOUVELLES de
Danse. Contredanse, Bruxelles, Belgique (Sobretudo os números especiais: Dossier autour de Rudolf Laban, Nouvelles de danse, nº 25,
outono/1995;
L'intelligence du corps (1a Parte), Nouvelles de danse nº 28, verão/1996;
L'intelligence du corps (2a Parte), Nouvelles de danse nº 29, outono/1996.
L'intelligence du corps (1a Parte), Nouvelles de danse nº 28, verão/1996;
L'intelligence du corps (2a Parte), Nouvelles de danse nº 29, outono/1996.
OSSONA, Paulina. A
educação pela dança. São Paulo: Summus, 1988.
PORCHER, Louis (org.). Educação
artística: Luxo ou necessidade? Trad. de Yan Michalski, São Paulo: Summus,
1982.
PRADIER, Jean-Marie. Le public et son corps: Éloge des
sens. Théâtre/Public, nº 120, 1994.
ROBINSON, Jacqueline. Le langage chorégraphique.
Paris : Vigot,
1978.
_______ . L'enfant et la dance. Paris : AAA Siegfried,
1993.
ROUQUET, Odile (org.). Les techniques d'analyse du mouvement et le danseur. Paris: Recherche en mouvement, 1985.
ROUSIER, Claire (org.). Histoires de corps – A propos
de la formation du danseur. Paris: Cité de la Musique , 1998.
SLATER, Wendy. Teaching modern educational dance.
Plymounth: Northcote House, 1976.
STOKOE, Patrícia &
HARF, Ruth. Expressão corporal na pré-escola. São Paulo: Summus, 1987.
STRAZZACAPPA-HERNANDEZ,
Márcia. "Fondements et enseignement des techniques corporelles des
artistes de la scène dans l'Etat de São Paulo, Brésil, au Xxème siècle".
Tese de Doutorado em
Estudos Teatrais e Coreográficos, Université de Paris VIII,
Saint Denis. França, 2000.
SOUSA, Eustáquia e ALTMANN,
Helena. Meninos e meninas: Expectativas corporais e implicações na educação
física escolar. Cadernos Cedes nº 48, Campinas: Cedes, 1999.
VIANNA, Klauss. A dança.
São Paulo: Siciliano, 1991.
Autora: Márcia
Strazzacappa - Professora do Departamento de Metodologia do Ensino da Faculdade de
Educação da Unicamp e Doutora Fonte: Caderno Cedes
Nenhum comentário:
Postar um comentário